Porque sabes que eu estou aqui. Porque eu sei que me sabes ler no silêncio.
Sábado, 23 de Abril de 2005
Lunário
A noite vestia-se lentamente de branco. A neve ia estendendo o ligeiro véu sobre a cidade há muito adormecida. Nenhum ruído, tudo estava branco e cintilava.
Beno e o rapaz caminharam, deixando pegadas que segundos depois se apagavam, como se ninguém tivesse alguma vez trilhado aquele caminho. Nevava, e Beno pressentiu que também o rapaz, um dia, se apagaria da sua vida. Mais tarde, muito mais tarde, talvez se lembrasse das mãos dele sobre as suas, como um ferimento no peito; então desejou que a neve também apagasse esse ferimento ainda distante.
Caminharam, os ombros tocando-se, e, de cada vez que era preciso atravessar uma rua, o rapaz agarrava-se ao braço de Beno. A noite transformara-se num deserto branco, sem um único som, sem o mais pequeno sinal de vida. A cidade dormia a sono solto. Beno sorriu e deu-lhe a mão.
A neve atingira alguns centímetros de espessura e eles deixaram de ouvir o barulho surdo das botas no asfalto. Longe dali, na noite desconhecida de outro bairro, vibrou uma sirene. (...) Entretanto, o silêncio apressara-se a regressar.
Beno metera a chave à porta. O dia rompía, tímido, ou seria apenas a cintilação das luzes da noite libertando-se do coração fresco da neve?
- Senta-te, vou fazer chá para aquecer... - disse Beno, dirigindo-se para a cozinha.
- Beno!
- Sim.
- Vives aqui sozinho?
O rapaz sentara-se na cama e descalçara as botas.
- Porquê? - perguntou Beno, espreitando à porta do quarto.
- Agrada-me este quarto, fico aqui para viver contigo.
Beno voltara à cozinha, deitara água a ferver no bule e esperava que o chá abrisse. Quando regressou ao quarto, o rapaz estava nu, estendido sobre a cama.
Beberam o chá a escaldar e fumaram. O quarto balouçava como um navio, e Beno pôs-se a olhar com minúcia e desejo para o rapaz nu. Os lábios húmidos de saliva, entreabertos, num início de sorriso. O sexo em repouso, as mãos sobre o peito, as pernas. Outra vez o sexo, os braços e os ombros, a curva do pescoço, os cabelos, o rosto, os olhos fechados, a pele, a pele... Beno não se cansava de olhar. (...)
Beno estava sentado na cama. Por fim, o rapaz apoiou os joelhos nas suas costas e passou-lhe os braços à roda dos ombros. Sentiu todo o seu corpo encostado ao do rapaz, e a sua respiração, e um beijo, no pescoço.
Lentamente, Beno desprendeu-se e, dobrando-se para trás, deitou a cabeça no peito do rapaz. Ouvia-lhe o bater do coração, fechou os olhos e deixou-se ficar, sem se mexer, naquela posição, paralisado e vazio. E, durante um tempo que ele não soube, afastou de si o mundo e todo o pensamento.
A madrugada roçou a janela, clara e fria, misteriosamente branca. Continuava a nevar.
Beno despiu-se. O rapaz puxou-o para si. Beijaram-se e amaram-se sem descanso manhã adiante.
A neve parara de cair, e tudo era silêncio e lassidão, quando desceram à íntima cumplicidade do sono.

Al Berto


publicado por SigurHead às 22:03
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Segunda-feira, 18 de Abril de 2005
David Crockett - Não te deixarei morrer
Gosto de espreitar o teu sono de criança, à noite, quando dormes alheia a tudo, e eu fico a ouvir a tua respiração e a alisar os teus cabelos. Às vezes, chego a pensar que é um desperdício ir dormir, em lugar de ficar a ver-te dormir, porque o tempo voa e em breve já não serás criança. Nestas noites, como diz a lei, tenho-te à minha "guarda", o que é um prazer insubstituível e a que alguns chamam direitos e outros chamam deveres.
Gosto de acordar de manhã, quando, ainda antes do despertador tocar, oiço o som do Canal Panda na sala, e fico a saber que tu já acordaste e que segues á risca o ritual estabelecido, e que a seguir irás fazer o teu pequeno-almoço e vestires-te para a escola. Mas, apesar disso, gosto de te recomendar que faças tudo isso e não te esqueças de lavar os dentes, sabendo que não te esqueces mas também gostas de ouvir-me dizer-to, porque essa é uma forma de saberes que te "guardo".
E embora eu saiba que não há carros à vista quando tu atravessas a rua para a porta da escola, vou contigo de mão dada, para que sintas ou para que eu finja para comigo mesmo que continuo a guardar-te até que a porta nos separe e outros fiquem contigo.
Porque há sempre uma porta que se fecha e que nos separa, ao contrário da casa, onde a porta do teu quarto e a do meu estão sempre abertas. Há sempre esta porta que se fecha sobre ti, outros que te falam e te escutam, enquanto eu caminho na tua ausência e na lembrança da tua voz, outros que sabem de ti o que eu ignoro, outros que por vezes se cansam de ti enquanto eu só te espero, outros que te vêem e te tocam enquanto eu olho as tuas fotografias espalhadas pela minha vida. Tão perto e tão longe de ti. Tão fundo e tão ausente. Tantas esperanças. Tantos anos, tantos danos.
Fecho os olhos e sonho. Tu caminhas comigo, de mão dada, num campo onde não há mais ninguém, e procuramos musgo e pinhas. Há uma gruta num pequeno bosque de que eu finjo não conseguir nunca encontrar a entrada sem ti. É o nosso segredo e lá estaremos protegidos do mundo e dos seus males e perigos. Entro por aí contigo. Adormeço e para sempre viverei contigo nesta gruta. E és tu então que me proteges.


publicado por SigurHead às 23:16
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Quinta-feira, 14 de Abril de 2005
Tempo de outro tempo
                    
 
Procuramos sempre o inesquecível, às vezes basta um cheiro, um olhar. As paisagens sonoras que escuto, feitas de bruma, chegam-me sem avisar. Sempre me achei nelas, muitas vezes sem saber porquê. Mas o porquê dos porquês nunca me tentou. Quando há um porque viver, suporta-se qualquer como.
 


publicado por SigurHead às 22:44
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Segunda-feira, 11 de Abril de 2005
...
Assim que acabamos de fazer amor, levantas-te da cama e fechas-te na casa de banho. Corre a água, lavas-me do teu corpo como quem quer afastar de si todo e qualquer sinal de que um homem entrou em ti.
Quando voltas, com os olhos ainda húmidos, sinto-te novamente fora do alcance, longe, lentamente mais longe, como os comboios iluminados que atravessavam a minha noite de criança, levando com eles o ruído, a luz, a determinação confiante das coisas que vão para um destino qualquer, quer queiramos, quer não, como se fossem humidade chupada pela areia da praia.


publicado por SigurHead às 21:43
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Domingo, 10 de Abril de 2005
...
"Olha e vê o que temos feito de nós. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não aceitamos o que não entendemos porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas, coisas e coisas, mas não temos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não esteja catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos procurado nos salvar, mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que a nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos o que realmente importa. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia."


publicado por SigurHead às 11:31
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Domingo, 3 de Abril de 2005
Margem
Sinto que sempre estive sentado na margem errada do rio, na margem errada da vida. No lado cinzento que pronuncia tempestade, linha do horizonte ponto onde o mar cinza se torna céu. Não há vontade de partir. Não há vontade de ficar. Um tecer de novos regressos. Vou fazendo horas. Metade da vida é uma perdulária expectativa. E tonta. E ansiosa. E inútil. Como quem se sentou numa gare de caminho-de-ferro, à espera de um comboio que não se sabe quando passará e qual o seu destino. Certeza está apenas no local de espera. E às vezes na própria espera. Se chego a concretizar a viagem, o lugar onde o comboio me levou, desilude-me. Isso, porém, não impede que tudo venha a repetir-se. Desperdiçar o instante real e concreto, mas que, como areia, se nos escapa das mãos, em favor de uma ilusória vez seguinte.


publicado por SigurHead às 15:05
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