Porque sabes que eu estou aqui.
Porque eu sei que me sabes ler no silêncio.
Domingo, 30 de Abril de 2006
Roída a dor muda
Roída a dor muda,
nunca mais os dias nas costas das mãos.
O resto que vem
cabe no silêncio de uma casa nova
onde não sopram despedidas.
Quarta-feira, 26 de Abril de 2006
Antídoto
O mundo pára. E lembro-me de ti como uma faca, uma faca profunda, a lâmina infinita de uma faca espetada infinitamente em mim. Não passou muito tempo desde que a manhã nasceu. Passou muito tempo desde que me deixaste sozinho entre as sombras que se confundiam com a noite. Noutras noites, olhámos para a lua. Nesta noite, não olhámos para a lua. Noutras noites, olhámos para a lua e enchemo-nos de desejos. Nesta noite, não olhámos para a lua e sofremos. Noutras noites, olhámos para a lua e não sabíamos o que era sofrer. Escuridão e esperança. Na lua, víamos mais do que o reflexo daquilo que queríamos inventar: os nossos sonhos. Víamos um futuro que era maior do que os nossos sonhos e que nos envolvia e que nos puxava para dentro de si. Nós sabíamos que nos esperava algo muito maior do que aquilo com que podíamos sonhar. Estávamos enganados. Aqui, sobre estas pedras que brilham, sob estas lágrimas no meu rosto, sei que nos enganámos e sei a lâmina infinita de uma faca.
José Luís Peixoto
Segunda-feira, 24 de Abril de 2006
Explicação do País de Abril
País de Abril é o sítio do poema.
Não fica nos terraços da saudade
não fica nas longas terras. Fica exactamente aqui
tão perto que parece longe.
Tem pinheiros e mar tem rios
tem muita gente e muita solidão
dias de festa que são dias tristes às avessas
é rua e sonho é dolorosa intimidade.
Não procurem nos livros que não vem nos livros
País de Abril fica no ventre das manhãs
fica na mágoa de o sabermos tão presente
que nos torna doentes sua ausência.
País de Abril é muito mais que pura geografia
é muito mais que estradas pontes monumentos
viaja-se por dentro e tem caminhos veias
- os carris infinitos dos comboios da vida.
País de Abril é uma saudade de vindima
é terra e sonho e melodia de ser terra e sonho
território de fruta no pomar das veias
onde operários erguem as cidades do poema.
Não procurem na História que não vem na História.
País de Abril fica no sol interior das uvas
fica à distância de um só gesto os ventos dizem
que basta apenas estender a mão.
País de Abril tem gente que não sabe ler
os avisos secretos do poema.
Por isso é que o poema aprende a voz dos ventos
para falar aos homens do País de Abril.
Mais aprende que o mundo é do tamanho
que os homens queiram que o mundo tenha:
o tamanho que os ventos dão aos homens
quando sopram à noite no País de Abril.
Manuel Alegre
Segunda-feira, 17 de Abril de 2006
...
somos tão ignorantes
(…)
podemos ter perdido
tudo
no último segundo
Placebo – The ballad of melody nelson mp3
Domingo, 16 de Abril de 2006
Sou insuportável
As vezes queria tocar-te mais e desejar-te menos, beijar-te mais e querer-te menos, abraçar-te mais e amar-te menos.
Sou insuportável, tu és insuportável. Há uma sinestesia de corpos e pensamentos que não destrinçamos, sob o medo de deixarmos de existir. Como se eu te dissesse ao ouvido inspira, agora expira. Não sou ninguém sem ti, tu continuas a sê-lo sem mim. Precisasses tu de mim na mesma proporção que preciso de ti.
Com as noites de sono que me receitaram já não vou lá. A lista de mezinhas já se esgotou: preciso de descansar, preciso de reconstruir o meu ego, de me lembrar quem sou, sem que continue a sentir-te por perto.
O teu nome cansa-me os maxilares.
Foo Fighters – Walking after you mp3
Sábado, 15 de Abril de 2006
Sem te ouvir
Extinguimo-nos. Eu dentro de ti como água dentro da água que corre lenta. Que seria amar sem estar dentro. No dentro tudo se consome, o amor e a saudade. A minha língua na tua língua. Dedos entrelaçados desenhados no branco dos lençóis. Suor salgado quando nos comemos nos lábios e na língua. Todos os pedaços de carne que as mãos puderam agarrar na emergência do desejo. Saudades evadidas de uma prisão longínqua de onde vínhamos de onde éramos os dois sem lugar para tanta pressa.
Não sei se houve noites nas nossas noites. Não restam minutos para seguir aquelas noites tantas vezes escritas e em fuga para que saibas o sabor da dor, ainda, antes de ires comprar as fechaduras de todas as portas que me deixaste por fechar.
Estou cansado de tanto dizer sem te ouvir.
Sexta-feira, 14 de Abril de 2006
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Não me deixes
Ne me quitte pas
Não me deixes
Il faut oublier
É preciso esquecer
Tout peut s'oublier
Tudo se pode esquecer
Qui s'enfuit déjà
Que já para trás ficou
Oublier le temps
Esquecer o tempo
Des malentendus
Dos mal-entendidos
Et le temps perdu
E o tempo perdido
A savoir comment
A querer saber como
Oublier ces heures
Esquecer essas hora
Qui tuaient parfois
Que de tantos porquês
A coups de porquois
Por vezes matavam
Le coeur du bonheur
A íntima felicidade
Ne me quitte pas
Não me deixes
Ne me quitte pas
Não me deixes
Ne me quitte pas
Não me deixes
Moi je t'offrirai
Oferecer-te-ei
Des perles de pluie
Pérolas de chuva
Venues de pays
Vindas de países
Où il ne pleut pas
Onde nunca chove
Je creuserais la terre
Escavarei a terra
Jusqu'après ma mort
Até depois da morte
Pour couvrir ton corps
Para cobrir teu corpo
D'or et de lumière
Com ouro com luz
Je ferais un domaine
Criarei um país
Oú l'amour sera roi
Onde o amor será rei
Oú l'amour sera loi
Onde o amor será lei
Oú tu serás reine
E tu a rainha
Ne me quitte pas
Não me deixes
Ne me quitte pas
Não me deixes
Ne me quitte pas
Não me deixes
Ne me quitte pas
Não me deixes
Je t'inventerai
Inventar-te-ei
Des mots insensés
Palavras absurdas
Que tu comprendras
Que tu compreenderás
Je te parlerai
Falar-te-ei
De ces amants-là
Daqueles amantes
Qui ont vu deux fois
Que viram de novo
Leurs coeurs s'embraser
Seus corações ateados
Je te raconterai
Contar-te-ei
L'histoire de ce roi
A história daquele rei
Mort de n'avoir pas
Que morreu por não ter
Pu te rencontrer
Podido conhecer-te
Ne me quitte pas
Não me deixes
Ne me quitte pas
Não me deixes
Ne me quitte pas
Não me deixes
On a vu souvent
Quantas vezes
Rejaillir le feu
Se não reacendeu o fogo
D'un ancien volcan
Do antigo vulcão
Qu'on croyait trop vieux
Que julgávamos velho
Il est parait-il
Até há quem fale
Des terres brulées
De terras queimadas
Donnant plus de blé
A produzir mais trigo
Qu'un meilleur avril
Que a melhor Primavera
Et quand vient le soir
E quando a tarde cai
Pour qu'un ciel flamboie
Vê como o vermelho e o preto
Le rouge et le noir
Se casam
Ne s'épousent-ils pas
Para que o céu se inflame
Ne me quitte pas
Não me deixes
Ne me quitte pas
Não me deixes
Ne me quitte pas
Não me deixes
Ne me quitte pas
Não me deixes
Je ne vais plus pleurer
Não vou chorar mais
Je ne vais plus parler
Não vou falar mais
Je me cacherai là
Escondo-me aqui
A te regarder
Para te ver
Danser et sourire
Dançar e sorrir
Et à t'écouter
Para te ouvir
Chanter et puis rire
Cantar e rir
Laisse-moi devenir
Deixa-me ser
L'ombre de ton ombre
A sombra da tua sombra
L'ombre de ta main
A sombra da tua mão
L'ombre de ton chien
A sombra do teu cão
Ne me quitte pas
Não me deixes
Ne me quitte pas
Não me deixes
Ne me quitte pas
Não me deixes
Ne me quitte pas
Não me deixes
Jacques Brel Johnny Hallyday - Ne me quitte pas mp3 Johnny Hallyday - Je t'aime je t'aime je t'aime mp3
Quarta-feira, 12 de Abril de 2006
Acreditar de vez enquando
Vi-me tantas vezes na doçura dos teus olhos e hoje parece mentira não poder rever a minha imagem desenhada uma vez mais na íris dos teus olhos. O teu olhar que muito falava e outro tanto escondia.
Cerro os olhos e ao respirar profundamente chega-me o teu aroma num sopro que me desperta. O teu sopro. Invade-me uma profunda tristeza uma saudade ao ter a certeza que não estás mais aqui.
Olho-me no espelho para ver se por casualidade os teus olhos não ficaram nos meus. Triste realidade só encontro os meus olhos. Quem quero enganar? Se não tenho o teu sorriso para que tentar ser feliz?
Eu era a parte que escolheras para estar para sempre contigo e onde timidamente existia ignorando outros acontecimentos que eu sempre entendi como superiores.
- Eu?
E tu convicto no que afirmavas, perguntavas
– Ouviste? Só precisas de fazer a tua parte.
Sim, ouvira e digeria a informação que o meu cérebro se esforçava por processar como verdadeira. Lembro-me de em seguida teres-te soltado num pranto que abracei.
– Vai ficar tudo bem.
O que mesmo era saber e dizer que a tua vida ia continuar, a minha também: caminhos que não se cruzariam – nunca mais. Mas eu nunca iria querer esquecer-te.
Preciso de acreditar em algo de vez enquando. Sempre me atraíram os impossíveis.
Ive Mendes - Castiçais mp3
Segunda-feira, 10 de Abril de 2006
Queimar só um instante
Lembro-me da forma como me tocaste no rosto com as pontas dos dedos e me beijaste numa carícia de pétalas de rosa. Lembro-me tão bem. .
Lembro-me de acordar e sentir-te ainda, desejar-te ainda, fechar os olhos tentar adormecer e não conseguir. Lembro-me tão bem. Lembro-me da forma como te sonhei. .
Como Caeiro “Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos; E o sol é sempre pontual todos os dias.” .
Na ausência a saudade é branca de tanto corroer cores recordadas. Todas as imagens, todos os tons da tua voz, a tua mão, o beijo. .
Se soubesses o traço vazio que desenhaste em mim. .
Quis começar por um engano e comecei pelo teu rosto nele me medi comparando erros e hesitações irreparáveis mas foi naturalmente incerto o resultado. Por muito que tente acender-te junto à pele algum desejo sei que nesse propósito tudo me escapa tudo me é inútil. Não se ensina o recuo ao corpo que te procura o rasto. Há-de queimar-te essa distância a pressa dos meus dedos numa manhã desfeita a dois. .
Deixa que te queime só mais um instante.
Quinta-feira, 6 de Abril de 2006
Marcado
Vieste desde o cume do país até mim. Chegaste com frescura na voz um toque que deste para o telemóvel, alertando-me que já me esperavas. Estava atrasado.
Esperavas-me, de sorriso aberto. Estupidamente comovidos com a presença do outro era o primeiro encontro.
- Este sou eu.
Tudo que estivesse para além de mim continha uma perfeição que apenas tinha como função mostrar-me a minha imperfeição; a minha falta de aptidão e jeito para primeiros encontros. A intensidade dos meus medos. Os meus medos em relação a ti.
No entanto, neste momento, já não sei quem és ou quem sou.
Quando por vezes caminho sozinho pelas ruas com as mesmas poças de água, que já antes existiam o cheiro do alcatrão molhado e os vidros das paragens embaciados e salpicados pela chuva miudinha de que um dia fugimos. Naquela mesma rua situada na parte de Lisboa que menos gosto. A rua do espaço que alugamos e onde pela primeira vez te tomei nos meus braços e nos perdemos nos corpos. E aproximamo-nos, juntamo-nos: abraço-te. Dás-me um beijo no pescoço, inspiras-me como se o oxigénio te faltasse. Os dois a olharmo-nos. Percorremos tanto para chegar-mos ali.
- Amo-te.
Sorriste e não abriste a boca. Deixaste-me na mão com as minhas palavras simples que ensaiei diferentes, mas saíram como saíram puras, em estado bruto como o meu coração calejado pelos momentos que partilhei. Agonizante experiência com hora de partida marcada e que sempre quis a dois e tu concebeste desde o início como singular e estéril.
- Podias ser tu.
Tudo é perfeito quando recordado. Os pecados esquecidos, o passado não tem impurezas, é imediato, está sempre à mão de um pensamento.
Acho que isto, pieguice ou não, marca qualquer um.