Porque sabes que eu estou aqui.
Porque eu sei que me sabes ler no silêncio.
Foi em 1978, no Verão que te conheci. Nesse ano, num dos poemas de «doze moradas de silêncio» citei Rilke: «Uma só coisa é necessária: a solidão, a grande solidão interior. Caminhar em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém é a isto que é preciso chegar.»
Depois a paisagem onde nos encontramos desapareceu, a pouco e pouco, num desfocado adeus. Eu escrevia, fechado num quarto de pensão, e tu retiravas-te do meu quotidiano. Morrias longe de mim.
O corpo que hoje regressa a Milfontes já não é o corpo esplêndido que conheceste. Se há coisas na vida que contam com o tempo, são a amizade e a velhice.
O olhar embaciou-se para o que me rodeia. Hoje, sem ti, já não consigo pressentir a sombra magnifica da noite sobre o rio. Nada se acende em mim ao escrever-te esta carta.
Só a foz do rio parece guardar a memória de uma fotografia há muito rasgada. O vento, esse, persegue a melancolia dos passos pelas dunas.
É possível que os Verões ainda sejam o que eram com os corpos estendidos ao sol, e a oferenda de um sorriso malicioso a confundir-se com o marulhar das águas.
Mas ninguém possui verdadeiramente alguma coisa. As coisas do mundo pertencem a todos e, sobretudo, a quem aprendeu a nomeá-las. E eu já não consigo nomear nada. Não me lembro sequer de um nome que resuma o movimento desastroso dos dias.
O teu rosto deixou de se acender na ilusão de te possuir mais uma noite.
Nada evoca esse tempo de frémitos de asas sobre a pele. Nenhum rumor do rio sobe até mim. Nenhuma ferida ficou por sarar.
Deixei que os ventos e as chuvas apagassem o desejo no rastro dos répteis incandescentes. Sinto-me como a haste quebrada da urze ao abandono nas areias varridas pelo oceano.
Contemplo as dunas, o casario contra a noite que se fecha, as luzes, o rio, as sombras das pessoas, o mar como uma lâmina sob a lua e a ausência alastra em mim, cortante.
Sento-me onde, dantes, me sentava contigo, perto do farol. O que me rodeia move-se no interior surdo de suas próprias sombras. É um movimento invisível através de territórios que o olhar mal assinala. Concentro a minha atenção nesses lugares que a luz não pode alcançar. Lugares escuros onde se escondem receios antigos e desilusões.
Mantenho-me imóvel, tacteio teu rosto diluído na salina claridade do entardecer.
Adormeço ou começo a subir o rio para fugir à imensa noite do mar.
Escreve-me, peço-te, enquanto a tua imagem permanece nítida perto de mim.
Vou prosseguir viagem assim que o dia despontar e o som do teu nome, gota a gota, se insinue junto ao coração.