Porque sabes que eu estou aqui. Porque eu sei que me sabes ler no silêncio.
Sábado, 8 de Maio de 2004
Usamo-nos.
Concentro-me nas coisas que me contas, e assim calado, assim submisso, mastigo-te dentro de mim enquanto me apunhalas com delicadeza, deixando claro em cada promessa não cumprida que nada devo esperar além dessa máscara colorida... que me queres assim porque assim é que és, unicamente assim é que me queres e utilizas-me todos os dias. Usamo-nos honestamente assim, eu a digerir faminto o que o teu corpo rejeita e passo a passo afundo no charco que não sei se é o conhecimento de nós dois ou o imenso engano de ti e de mim. Depois afastamo-nos cautelosos ao entardecer, e na solidão de cada um sei que tecemos lentos a nossa próxima mentira, tão bem urdida que na manhã seguinte será como verdade pura e sorriremos amenos, desviando os olhos. À medida que o dia avança e estrutura milímetro a milímetro uma harmonia que desaba em cada olhar ou toque de pele. Os vermes consomem porões que insistimos manter indevassáveis até que o não-feito que se acumulou durante todo esse tempo cresce como uma célula cancerosa para quem sabe explodir em feridas indisfarçáveis na superfície da pele que não tocamos por covardia. Dentro de mim guardo sempre o teu rosto e sei que por escolha ou fatalidade, não importa, estamos tão enredados que seria impossível recuar para não ir até ao fim e ao fundo. Isso que nunca vivemos antes e talvez tenha inventado apenas para distrair-me nesses dias onde aparentemente nada acontece e tenha inventado quem sabe em ti um brinquedo semelhante ao meu para que não passem tão desertas as manhãs e as tardes a buscar motivos para os sustos e as insónias e as inúteis esperas ardentes e loucas invenções nocturnas. Lentamente falas, e lentamente calo, e lentamente aceito, e lentamente quebro, e lentamente falho, e lentamente caio cada vez mais fundo e já não consigo voltar à tona porque a mão que me estendes ao invés de me emergir afunda-me mais e mais enquanto dizes e contas e repetes essas histórias longas, essas histórias tristes, essas histórias loucas como esta que acaba aqui, agora, assim, se outra vez não viesses e me cegasses e me afogasses nesse mar aberto que nós sabemos que não acaba nem assim nem agora nem aqui...


publicado por SigurHead às 14:56
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Junho 2006
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

11
12
13
14
15
16
17

18
19
20
21
22
23
24

25
26
27
28
29
30


posts recentes

Apenas quando o mundo nos...

Anoitece devagar

Mas comigo era diferente....

Tanto para te dizer

...

Não digas a ninguém

Dei-me sempre mais do que...

Luminoso afogado

Roída a dor muda

Antídoto

arquivos

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

Fevereiro 2004

links
blogs SAPO
subscrever feeds