Anoitece devagar. Anoitece sobre os ombros. Anoitece onde não estou e em redor do meu corpo. Anoitece por dentro dos objectos que evocam a tua presença. A penumbra invade a casa, corrói tudo o que é sólido. Antes, a solidão vergava-me, mas com o passar do tempo povoei-a com sorrisos, pequenos gestos que aderem à memória e me dizem que existo, que continuo vivo onde pressinto o coração a arder. É o ouro que se ganha quando se aprendeu a estar sozinho, tem-se tudo e não se possui nada. O que restava da memória foi partilhado ou foi abandonado para sempre. Tudo está constantemente presente e vibra sob a luminosidade imperceptível de ser eterno na fracção de segundos. Se morresse agora não deixava nada, porque bebi toda a minha sede, esvaziei-me, devorei noites do amargo que têm as coisas antes de nos pertencerem. Teu corpo, por exemplo custou-me tanto inventar-lhe formas consistentes, um reflexo, uma sombra que se lhe adaptasse e o acompanhasse. Teu corpo vive hoje dentro do espelho onde se perdeu o meu.